Divino Sobral
divinosobral@gmail.com
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
Coral de Árvore
Coral de Árvore. 2010. Lã envolvida sobre galhos de goiabeira. Parque Bosque dos Buritis, Goiânia. Fotografias de Rubisnei de Brito.
A intervenção "Coral de Árvores" nasceu nesse Parque e teve sua primeira montagem no dia 08 de maio de 2002. Agora, oito anos depois, tenho a oportunidade de intervir novamente no local que está inteiramente aparelhado como área de lazer e de ecologia no espaço urbano. Para receber a intervenção escolhi uma única goiabeira, situada entre dois lagos, numa esquina gramada, onde as crianças bricam pela manhã e os namorados se encontram à tarde.
segunda-feira, 21 de junho de 2010
sexta-feira, 4 de junho de 2010
Nuances Temporais - texto de Rodrigo Alves no jornal O Popular
Nuances Temporais
Rodrigo Alves.
Um dos nomes de maior destaque da produção de arte contemporânea em Goiás, Divino Sobral leva a partir de hoje ao Museu de Arte de Goiânia a exposição Onde o Tempo se Bifurca, calcada em uma rica pesquisa sobre o universo dos bandeirantes na história e na arquitetura da Cidade de Goiás, que sugere paralelos entre passado, presente e futuro. Realizado com o Prêmio Marcantonio Vilaça, da Funarte, o trabalho conceitual é constituído por vinte e três peças que formam uma grande obra, uma espécie de instalação, que não pode ser apreciada sem contextualização.
Dezoito anos após sua primeira exposição individual em Goiânia, Sobral apresenta um trabalho que mostra sua verve criativa e extrapola os limites da criação artística para servir também como uma maneira de ensinar História, com H maiúsculo. Como um artista que gosta de fundamentar suas obras com uma minuciosa pesquisa, neste trabalho ele traz peças com técnicas como fotografia, bordado e até a construção de um móvel em madeira que vão além da criação estética e também narram fatos históricos.
Dispostas em quadros, fronhas envelhecidas que remetem ao sonho, na fronteira entre o real e o imaginário, são bordadas com imagens símbolos da arquitetura da cidade histórica que demonstram diversas fases pelas quais Goiás passou e ainda trazem depoimentos de 11 entrevistados, entre elas figuras conhecidas como Antolinda Borges, Frei Marcos e Sebastião Morais Bueno (descendente de Bartolomeu Bueno da Silva). “Onde o Tempo se Bifurca quer fazer essas pontes entre passado e presente, presente e futuro, e futuro e passado. Quero mostrar como a Cidade de Goiás tornou-se uma cidade do trauma de diversas perdas, como o fim do ciclo do ouro e mais tarde com a transferência da capital”, explica o próprio artista.
Para compor a exposição, Sobral ficou cerca de dois anos fazendo entrevistas, visitando diversos pontos históricos da Cidade de Goiás, além de buscar documentos e livros para trabalhar as informações. Um dos pontos altos de todo este resgate histórico refere-se à ocupação da Vila Boa pelos bandeirantes, com destaque especial para Bartolomeu Bueno da Silva. Uma das casas que o bandeirante viveu, preservada pela história oral que sempre deu conta de que ele viveu ali, ganha destaque no móvel que representa uma antiga sacada que se abre para a visão da imagem de uma obra sacra de Veiga Valle ampliada em fotografia.
A montagem é quase uma síntese visual do trabalho todo, pois coloca em perspectiva ricos detalhes arquitetônicos que testemunham o contexto histórico em que foram produzidos. “A arquitetura também nos conta a história da cidade”, diz Divino. Após deixar tudo pronto, nos dois anos de pesquisa, o artista levou cerca de três meses para executar tudo. Para tanto recorreu a tecnologias como máquinas de bordar e a própria câmara fotográfica para registrar detalhes de uma das obras de Veiga Valle, quase imperceptíveis a olhos desavisados.
VARIEDADE
Responsável por resultados instigantes, Sobral sempre se preocupou em pesquisar diferentes materiais como suporte de suas esculturas, objetos, desenhos, pinturas e instalações. A variedade de técnicas, materiais e gêneros em sua produção é vasta. Em escultura, por exemplo, ele já trabalhou em estrutura de borracha e de ferro, algumas revestidas de materiais incomuns e até estranhos como capim, cabelo humano, algodão, fios de cobre, arame, linhas de bordar e de costurar.
Artista que saiu dos palcos do teatro diretamente para o universo da arte contemporânea, Sobral mantém como eixo temático de sua obra a memória, a passagem do tempo e as relações antagônicas. A oxidação (ferrugem) das fronhas presentes na atual exposição e em trabalhos anteriores funciona, por exemplo, como metáfora do envelhecimento, do qual nada nem ninguém escapa. Para ele o tempo é como a água que escorre, escapa das mãos, do olhar, do corpo. Um fluir contínuo.
Texto publicado no jornal O Popular, Magazine, Página 1, Goiânia, 17 de junho de 2010.
Prêmio Marcantonio Vilaça Funarte. Onde o tempo se bifurca. Obra da coleção do Museu de Arte de Goiânia
Fotos de Paulo Rezende.
Onde o tempo se bifurca. 2010.
Oxidação e bordados manual e mecânico sobre 21 fronhas; apropriação da fotografia do manto de Nossa Senhora do Parto, obra de Veiga Valle pertencente ao Museu de Arte Sacra da Boa Morte em fotografia de Paulo Rezende; portal, porta e muxarabiê reproduzidos da casa de Bartolomeu Bueno da Silva, filho, na Cidade de Goiás. Depoimentos de Acari Félix da Silva, Abner Curado, Antolinda Baia Borges, Eunice Sócrates de Sá, Frei Marcos, Helena Maria Mendes, Mansueto Arcanjo de Campos, Nei Rodrigues Vidigal, Sebastião de Morais Bueno, Welington Barros da Silva, Yasmim Sócrates Nascimento.
Fronhas de 57 x 81 cm cada. Com moldura 72 x 99 cm.
Fotografia 148 x 60 cm. Com moldura 160 x 74 cm.
Muxarabiê 217 x 200 x 200 cm.
Esta obra foi adquirida pelo Museu de Arte de Goiânia através do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça 2009 concedido pela Funarte.
Onde o tempo se bifurca. 2010.
Oxidação e bordados manual e mecânico sobre 21 fronhas; apropriação da fotografia do manto de Nossa Senhora do Parto, obra de Veiga Valle pertencente ao Museu de Arte Sacra da Boa Morte em fotografia de Paulo Rezende; portal, porta e muxarabiê reproduzidos da casa de Bartolomeu Bueno da Silva, filho, na Cidade de Goiás. Depoimentos de Acari Félix da Silva, Abner Curado, Antolinda Baia Borges, Eunice Sócrates de Sá, Frei Marcos, Helena Maria Mendes, Mansueto Arcanjo de Campos, Nei Rodrigues Vidigal, Sebastião de Morais Bueno, Welington Barros da Silva, Yasmim Sócrates Nascimento.
Fronhas de 57 x 81 cm cada. Com moldura 72 x 99 cm.
Fotografia 148 x 60 cm. Com moldura 160 x 74 cm.
Muxarabiê 217 x 200 x 200 cm.
Esta obra foi adquirida pelo Museu de Arte de Goiânia através do Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça 2009 concedido pela Funarte.
Entre memória e história, sobre a instalação Onde o tempo se bifurca de Divino Sobral - Texto de Cayo Honorato
Detalhe do manto de Nossa Senhora do Parto, escultura de Veiga Valle fotografada por Paulo Rezende.
Entre memória e história, sobre a instalação Onde o tempo se bifurca de Divino Sobral
Concebida como instalação de grande formato, Onde o tempo se bifurca (2010), do artista (que também atua como crítico e curador) Divino Sobral, compõe-se de duas partes. De um lado, a reprodução em tamanho natural do único exemplar existente na Cidade de Goiás de um muxarabiê (balcão de origem mourisca, da altura de uma porta e coberto de treliça, muito usado pela arquitetura colonial do século XVIII, mas nesse caso, segundo o artista, reconstruído a partir de desenho do início do XIX, feito pelo artista inglês William Burchell [1781-1863], representando a casa onde atualmente está instalado), junto ou através da qual se pode ver, na parede que lhe serve de fundo, a fotografia de um detalhe característico, em tamanho ampliado, do tratamento gráfico e pictórico que Veiga Valle (1806-1874) dava a suas esculturas, sendo ele um dos principais artistas do barroco brasileiro em Goiás. Do outro, uma série de 21 fronhas de algodão, submetidas a um processo de oxidação, nas quais foram bordadas informações sobre a cidade, tais como: datas, nomes de personalidades políticas e culturais, de edificações públicas e particulares, inscrições recolhidas da paisagem local, depoimentos obtidos em entrevistas com “quaisquer” moradores antigos da cidade, além de elementos arquitetônicos diversos (janelas, colunas, balaústres, ornamentos, etc.), geralmente pouco notados. Uma das fronhas se destaca das demais, figurando entre outras a casa onde teria morado Bartolomeu Bueno da Silva, fundador em 1727 do então Arraial de Sant’Anna.
Extraída de um conhecido conto de Jorge Luis Borges (O jardim de veredas que se bifurcam), a “bifurcação temporal” alude a uma “rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”, como procedimento construtivo de um livro-labirinto infinito, capaz de abranger simultaneamente todos os desenlaces – o que traduz, na instalação, uma sobreposição específica de linguagens, suportes, evidências, narrativas e durações. Dessa forma Sobral desdobra seu interesse, manifesto desde o início de sua trajetória nos anos 1990, pelos caminhos da formação da memória, da recordação, da reminiscência, do esquecimento, enquanto modos de percepção da atualidade do passado, entendido como tempo da existência tanto individual, quanto coletiva ou mesmo imemorial. Mas enquanto os primeiros trabalhos buscavam materializar esses processos no âmbito de uma arqueologia pessoal (por exemplo, em esculturas feitas com pêlo humano, como aquilo que no corpo tensiona seus limites orgânicos; em pedaços de sabão artesanal, empilhados de modo semelhante a pequenas ruínas; ou mais recentemente na organização de uma antologia da pedra na poesia, na qual a vida geológica é eventualmente testemunhada), Onde o tempo se bifurca intercepta os modos de explicação da realidade histórica de um lugar, todavia, na qualidade de enunciado poético, de um determinado arranjo de signos, que redistribuísse talvez as interpretações do que é ou não verdadeiro nessa realidade, abrindo as possibilidades de se pensar a história. (Cf. Jacques Rancière. A partilha do sensível. [capítulo IV]).
É certo que essa “despersonalização” (no sentido da história, mas também da tradição artística) não tem exatamente uma pretensão teórica. Como uma espécie de maquina da visão, o muxarabiê faculta múltiplas linhas de fuga por diferentes visibilidades, a serem experimentadas pelo corpo na temporalidade que ele adensa. Também os registros nas fronhas oxidadas, como se em “páginas avulsas de um livro desencadernado”, mais do que uma explicação, lembram a consistência do que é pelo sono decantado ou não cessa de se dissipar. Há porém um “distanciamento”: a libido impregnada aos primeiros trabalhos por uma artesania compulsiva, em Onde o tempo se bifurca, migrou para um processo de pesquisa, que precede e ao mesmo tempo ultrapassa a execução da instalação, suscitando um regime conceitual particularmente afetivo. Em termos cognitivos, é a personagem do mesmo conto de Borges quem “melhor” nos situa em tais deslocamentos: “todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora (...) e tudo o que realmente acontece, acontece a mim...” Uma ressalva: engana-se quem pensa que o artista goiano, no que seria seu trabalho mais “regional”, assume uma vontade por identidade ou qualquer sentimento nostálgico. Mais propriamente, estaria em jogo aqui o que fosse “contemporâneo”.
Cayo Honorato, São Paulo, abril de 2010
Entre memória e história, sobre a instalação Onde o tempo se bifurca de Divino Sobral
Concebida como instalação de grande formato, Onde o tempo se bifurca (2010), do artista (que também atua como crítico e curador) Divino Sobral, compõe-se de duas partes. De um lado, a reprodução em tamanho natural do único exemplar existente na Cidade de Goiás de um muxarabiê (balcão de origem mourisca, da altura de uma porta e coberto de treliça, muito usado pela arquitetura colonial do século XVIII, mas nesse caso, segundo o artista, reconstruído a partir de desenho do início do XIX, feito pelo artista inglês William Burchell [1781-1863], representando a casa onde atualmente está instalado), junto ou através da qual se pode ver, na parede que lhe serve de fundo, a fotografia de um detalhe característico, em tamanho ampliado, do tratamento gráfico e pictórico que Veiga Valle (1806-1874) dava a suas esculturas, sendo ele um dos principais artistas do barroco brasileiro em Goiás. Do outro, uma série de 21 fronhas de algodão, submetidas a um processo de oxidação, nas quais foram bordadas informações sobre a cidade, tais como: datas, nomes de personalidades políticas e culturais, de edificações públicas e particulares, inscrições recolhidas da paisagem local, depoimentos obtidos em entrevistas com “quaisquer” moradores antigos da cidade, além de elementos arquitetônicos diversos (janelas, colunas, balaústres, ornamentos, etc.), geralmente pouco notados. Uma das fronhas se destaca das demais, figurando entre outras a casa onde teria morado Bartolomeu Bueno da Silva, fundador em 1727 do então Arraial de Sant’Anna.
Extraída de um conhecido conto de Jorge Luis Borges (O jardim de veredas que se bifurcam), a “bifurcação temporal” alude a uma “rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”, como procedimento construtivo de um livro-labirinto infinito, capaz de abranger simultaneamente todos os desenlaces – o que traduz, na instalação, uma sobreposição específica de linguagens, suportes, evidências, narrativas e durações. Dessa forma Sobral desdobra seu interesse, manifesto desde o início de sua trajetória nos anos 1990, pelos caminhos da formação da memória, da recordação, da reminiscência, do esquecimento, enquanto modos de percepção da atualidade do passado, entendido como tempo da existência tanto individual, quanto coletiva ou mesmo imemorial. Mas enquanto os primeiros trabalhos buscavam materializar esses processos no âmbito de uma arqueologia pessoal (por exemplo, em esculturas feitas com pêlo humano, como aquilo que no corpo tensiona seus limites orgânicos; em pedaços de sabão artesanal, empilhados de modo semelhante a pequenas ruínas; ou mais recentemente na organização de uma antologia da pedra na poesia, na qual a vida geológica é eventualmente testemunhada), Onde o tempo se bifurca intercepta os modos de explicação da realidade histórica de um lugar, todavia, na qualidade de enunciado poético, de um determinado arranjo de signos, que redistribuísse talvez as interpretações do que é ou não verdadeiro nessa realidade, abrindo as possibilidades de se pensar a história. (Cf. Jacques Rancière. A partilha do sensível. [capítulo IV]).
É certo que essa “despersonalização” (no sentido da história, mas também da tradição artística) não tem exatamente uma pretensão teórica. Como uma espécie de maquina da visão, o muxarabiê faculta múltiplas linhas de fuga por diferentes visibilidades, a serem experimentadas pelo corpo na temporalidade que ele adensa. Também os registros nas fronhas oxidadas, como se em “páginas avulsas de um livro desencadernado”, mais do que uma explicação, lembram a consistência do que é pelo sono decantado ou não cessa de se dissipar. Há porém um “distanciamento”: a libido impregnada aos primeiros trabalhos por uma artesania compulsiva, em Onde o tempo se bifurca, migrou para um processo de pesquisa, que precede e ao mesmo tempo ultrapassa a execução da instalação, suscitando um regime conceitual particularmente afetivo. Em termos cognitivos, é a personagem do mesmo conto de Borges quem “melhor” nos situa em tais deslocamentos: “todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora (...) e tudo o que realmente acontece, acontece a mim...” Uma ressalva: engana-se quem pensa que o artista goiano, no que seria seu trabalho mais “regional”, assume uma vontade por identidade ou qualquer sentimento nostálgico. Mais propriamente, estaria em jogo aqui o que fosse “contemporâneo”.
Cayo Honorato, São Paulo, abril de 2010
Onde o tempo se bifurca - Coleção do Museu de Arte de Goiânia
Uma parte da instalação é composta por vinte e uma fronhas oxidadas e bordadas. Os textos foram bordados digitalmente e as figuras arquitetônicas foram bordadas à mão. As fotografias foram feitas por Paul Morais.
A Minha e a Casa de Bartolomeu - Texto de Leonardo Lacerda
Desenho retratando Bartolomeu Bueno da Silva publicado na contracapa do catálogo "A Cidade de Goiás e o escultor goiano Veiga Valle", editado pelo MASP em 1978.
A Minha e a Casa de Bartolomeu
Objets inanimés avez-vous donc une âme
Qui s'attache à notre âme et la force d'aimer?
Lamartine
Pede-me que lhe apresente a casa do bandeirante Bartolomeu Bueno. Não aquela da sua origem, a de Santana de Parnaíba, mas a outra, a do seu destino, a do arredado Arraial de Santana, renomeado Vila Boa de Goiás em honra dele e de seus feitos. Mas pergunto-lhe, antes: - Como posso lhe fazer visitar a morada da minha infância como se ela pertencesse a outrem? Qual casa é a dele, e qual é a minha? E se eu, em guisa de escape, lhe expusesse tão-somente a casa da rua da Cambaúba n°30, livre objeto, sem dono? Mas tal casa assim, nem dele nem minha, existe?
Que vejamos então, e primeiro, a casa. À dura luz do meio-dia do mês de setembro, o branco da sua caiação quase cega o transeunte, e a reverberação do calor das lajes da calçada e sarjeta a fazem vibrar, leve, irreal como miragem. A casa da ponte da Cambaúba vige à beira-rio no torpor do mormaço e sobrevive à pasmaceira de séculos. Casa vasta de três lances, os cheios de sua fachada são paredões espessos em taipa de pilão, enquadrados por vigões de aroeira e protegidos do rigor das intempéries pelo velho telhado já arreado, arrematado em beiral bem avançado com encachorramento em madeirame lavrado. Seus vazios são dois janelões pesados de duas folhas cada, marcados por largos quadros de madeira, uma porta rangente guarnecida de aldravas e bandeira com vidraça colorida, em alto de escadaria, mais um largo portão que dá acesso ao porão da parte assobradada, e um muxarabiê que o encima. O visitante incauto crê ver nela a casa tal como levantada em princípios do século XVIII, no afã da descoberta do ouro prometedor que fez fulgir tanta talha-dourada na distante Lisboa; e que despertou no perdulário D. João V vãs ambições desmesuradas largadas inconclusas. – Ô-de-fora, não se deixe iludir: o que você vê são restos! A vetusta casa já teve seus nobres adereços: as rótulas de treliças que guarneciam os janelões, encimadas por sobrevergas cinzeladas; um largo muxarabiê que resguardava, juntas, as janelas gêmeas que dão para o rio, no lado assobradado; e o interior assoalhado e com forro armado em saia-e-camisa. Procure nos marcos das janelas, e verá ainda os cravos que sustentavam as rótulas, como testemunhos. Assim, como objeto concreto, a casa em si é noves-fora: nada. Não teve ela destino diferente daquele de todo o casario de Goiás: suas rótulas e seus muxarabiês tiveram morte decretada por D.João VI, para benefício pecuniário dos recém-instalados produtores de vidro do Rio de Janeiro: saem as rótulas e gelosias de tradição secular árabe, resguardadoras da intimidade e dos segredos; entra a vidraça de guilhotina inglesa, devassadora da privacidade, mas alvissareira da luz que não nos davam por meio da educação e da ciência. O cutelo do cósmico tempo e dos humanos mandos privou a casa dos seus adornos, da sua pele, tal como os algozes de São Bartolomeu – o outro, o homônimo apóstolo mártir – o esfolaram um dia. O muxarabiê que existe agora não é só um dispositivo útil de aeração da casa restaurada e indício didático do que ela fôra um dia, mas também uma bandeira erguida em reparo de arbitrariedades. Eis aí, pois, a matéria da casa, reduzida à sua branca essência de puros ossos.
Veja que é sobre o alicerce dessa alva ossatura original que repousa a casa-monumento que você veio visitar – uma das antigas moradas do Bartolomeu andarilho, desbravador de sertões, anhangüera conquistador de povos, descobridor de minas, semeador de arraiais e vilas, e alargador de império. – Não adianta buscar, forasteiro! Nenhum desses atributos vê-se na casa em si. Para achar o que procura, melhor é mirar afora. Com a vista larga, é de costas para a casa que você compreenderá o que significa o sóbrio monumento. Você reconhecerá, aqui, a Villa-Boa de Goyazes como colônia paulista, uma das filhas sobreviventes da prolífica Santanna do Parnahyba, orgulhosa da herança dos traços atávicos que se vêem em suas construções modestas e de seu sotaque caipira que se ouve em suas modinhas. Se aprende a ver e a ouvir, perceberá quão diferente é das cidades mineiras coetâneas e vizinhas. Mais para lá, verá duas capitais, uma do estado e outra do país, modernas e airosas, saídas das pranchetas do sonho e da vontade. Acolá, bem mais além, a oeste, vislumbrará um Brasil gigante, um mundaréu além-Tordesilhas, lusófono, acrescido de matas, de bichos, de rios, de minérios, e de povos. Se você se despe, com humildade e sabedoria, da malfazeja presunção ufana inculcada em escola, compreenderá também que o monumento sublinha a exterminação de Goyazes, Avá-Canoeiros e Panará-Caiapós, bem como o desapossar de Auwẽ-Xavantes, Akwẽ-Xerentes, Iny-Karajás, Mehin-Krahôs e tantos outros Jê-Tapuia, uma gente contumaz, altiva, e renitente. Diferente do Tupi e do português da costa, ocupados a espreitar o exterior e a esperar dos largos horizontes do mar aberto, o Tapuia cultiva e ensina o desdém da esperança no de fora. Para a gente daqui, adiante é só mais para dentro: do mundo e de nós mesmos. Triste, o monumento traz a jaça de anunciar também o avançar da monocultura, o minguar dos cerrados e campos, o afogar dos buritizais e veredas, e o derrancar de córregos e rios. O monumento é só isso: a um só tempo a primeira casa daqui, construída em terra alheia, sem agradecimento ou pedido de desculpas, e o marco avançado da expansão de nossas fronteiras, onde se plantou bandeira. Compreende? A alma do monumento oscila entre nossos públicos vícios e virtudes.
– Ô-de-fora, achegue e adentre, e descobrirá que mais que monumento, a casa é também morada. Esta é a casa da Vó Maria, onde ela reside feliz com seu papagaio e onde vivi minha infância. Vê as inusitadas conversadeiras, como bancos de alvenaria recortados na própria parede e apegados às janelas? Nelas, ainda revejo assentadas, em colóquio sóbrio cochichado entre inflexões desuetas, minha bisavó Alexandrina (– A sua bênção, vó ‘Xandrina) e Dona Carola, veneráveis. É certo que você não as vê: memória é capacidade, faculdade apenas. Para lembrar há-de haver registro, recordação e retentiva; só, bem depois, relembrança. Relembro. Dona Carola recontava as origens da casa: – “... mandada erguer pelo Anhangüera, nos primórdios, para vivenda e gestão da faina garimpeira... ficada em mãos de padre por muitos anos... passada a Sêo Nazareno, parente meu, antes que Juca a houvesse como pagamento por haver instruído inventário de tia-velha...” Falava com firme autoridade de legítima Camargo e Ortiz que foi, descendente direta dos bandeirantes fundadores, chegados juntos com Bartolomeu, empunhando arcabuz e espada, encourados com gualteira e gibão de armas. Aprendi com elas que os sulcos de rugas nonagenárias ocultam mais saberes e mistérios do que cabem em rios fundos como o Tocantins, e que podem desaguar em oceanos ainda mais anchos e profundos. Acompanho-lhe ao terreiro e ao seu poço em alcantaria. Cada vez que passo aqui, confesso-lhe, coço a cabeça e vem-me o perfume de uma florada distante. Junto ao poço e à sombra dos arbustos do jardim, minha avó me catava as obstinadas lêndeas, no colo coberto por fralda engomada. Para mim, entenda, piolho cheira a flor de sabugueiro. Compreendi assim, meditado em cabecinha confusa e em comichão, que o mal vem sempre misturado com o bem, e que é uma trabalheira separar um do outro, para andar seu direito caminho. Passe, venha à alcova, que lhe mostro não só o valor do que há, mas também o de que não há. Vê aquele buraco entre as telhas, a ripa e o caibro? Aquilo não é só goteira de casa-de-pobre. Nas águas dum ano que me viu menino, foi por onde vieram o chorro e o esborrifo que encheram a poça de lama no chão de terra-batida do meu quarto que foi o primeiro mar em que naveguei. Um mar imaginado distante e tremendo, como o entreouvido em conversa de gente grande, e que desde então ansiei. Na seca, foi pelo mesmo vão que entrou o raio de luz que me permitiu folhear e ler, fascinado, meu primeiro livro, e descobrir que eu podia me comunicar com espíritos. Foi Dona Rita, outra Camargo, quem me ensinou a estudar: – “Para ler, há que interpretar. Entende, Leonardo? Desconfie do que lê. Só quando se faz a exegese é que o livro deixa de ser só do autor e passa a ser também da gente”. Eu era tão pequenino e meu entendimento não dava alcance. Por isso, só decorei, no ato, para saber mais, bem depois, quando pude afinal conversar com Homero, Dante, Cervantes, Proust, Mann e Guimarães Rosa, de homem a homem, sem o embaraço da confusão das línguas ou da diacronia. Não compreende o porquê de tantos e insignificantes pormenores? Para mim, saiba, é no fiapico do vivido, particular, que se revela o espírito da morada, o que a anima e lhe dá sentido.
A casa, o monumento e a morada, mostrei-lhe quase tudo, mas separado. Quando cruzar a ponte e subir a estrada do morro, de regresso aos seus, volte ainda o olhar e descubra, afinal, como a verdadeira casa se reflete inteira, nobre, real, bela e íntegra, na água do rio Vermelho. E ponha as mãos em conchas, alargando as orelhas. Quem sabe ouvirá vir do interior da morada, filtrado, no recôndito da gelosia e longe dos olhos indiscretos da rua, uma prece sussurrada a Mnemosine: – Deusa mãe das Musas e de toda arte, uma só coisa lhe imploro, contrito. Queira que boas e bem-intencionadas almas não transformem a casa, um dia, em Museu. Só a Senhora – personificação da Memória – pode compreender que ao deixar de ser morada para ser elevada tão-somente à ilusória distinção de monumento, a casa abrigará apenas esquecimento, olvido e morte. Permita que outros meninos e meninas possam conviver com os fantasmas que a habitam, pois essa é da casa a maior riqueza. E que eles possam ter o privilégio, como eu, de levá-la sempre às costas, como caramujo e tartaruga, pelas florestas, pelos rios e mares por onde vagarem, empunhando suas próprias bandeiras.
Leonardo Lacerda
Genebra, 6 de maio de 2010
Leonardo Lacerda é neto da atual moradora da Casa de Bartolomeu Bueno na Cidade de Goiás, onde viveu sua infância e fincou suas raízes. Ele tem uma vivência particular que estofa sua interpretação histórica e poética do imóvel. Foi ele o responsável pela restauração do monumento e pela inserção do muxarabiê na sua fachada. Leonardo mora na Suiça e nos comunicamos apenas por e-mail, entretanto sinto que o muxarabiê nos aproxima. Convidei-o para fazer este texto para o catálogo por acreditar que seu depoimento acrescenta muito à leitura de minha obra.
A Minha e a Casa de Bartolomeu
Objets inanimés avez-vous donc une âme
Qui s'attache à notre âme et la force d'aimer?
Lamartine
Pede-me que lhe apresente a casa do bandeirante Bartolomeu Bueno. Não aquela da sua origem, a de Santana de Parnaíba, mas a outra, a do seu destino, a do arredado Arraial de Santana, renomeado Vila Boa de Goiás em honra dele e de seus feitos. Mas pergunto-lhe, antes: - Como posso lhe fazer visitar a morada da minha infância como se ela pertencesse a outrem? Qual casa é a dele, e qual é a minha? E se eu, em guisa de escape, lhe expusesse tão-somente a casa da rua da Cambaúba n°30, livre objeto, sem dono? Mas tal casa assim, nem dele nem minha, existe?
Que vejamos então, e primeiro, a casa. À dura luz do meio-dia do mês de setembro, o branco da sua caiação quase cega o transeunte, e a reverberação do calor das lajes da calçada e sarjeta a fazem vibrar, leve, irreal como miragem. A casa da ponte da Cambaúba vige à beira-rio no torpor do mormaço e sobrevive à pasmaceira de séculos. Casa vasta de três lances, os cheios de sua fachada são paredões espessos em taipa de pilão, enquadrados por vigões de aroeira e protegidos do rigor das intempéries pelo velho telhado já arreado, arrematado em beiral bem avançado com encachorramento em madeirame lavrado. Seus vazios são dois janelões pesados de duas folhas cada, marcados por largos quadros de madeira, uma porta rangente guarnecida de aldravas e bandeira com vidraça colorida, em alto de escadaria, mais um largo portão que dá acesso ao porão da parte assobradada, e um muxarabiê que o encima. O visitante incauto crê ver nela a casa tal como levantada em princípios do século XVIII, no afã da descoberta do ouro prometedor que fez fulgir tanta talha-dourada na distante Lisboa; e que despertou no perdulário D. João V vãs ambições desmesuradas largadas inconclusas. – Ô-de-fora, não se deixe iludir: o que você vê são restos! A vetusta casa já teve seus nobres adereços: as rótulas de treliças que guarneciam os janelões, encimadas por sobrevergas cinzeladas; um largo muxarabiê que resguardava, juntas, as janelas gêmeas que dão para o rio, no lado assobradado; e o interior assoalhado e com forro armado em saia-e-camisa. Procure nos marcos das janelas, e verá ainda os cravos que sustentavam as rótulas, como testemunhos. Assim, como objeto concreto, a casa em si é noves-fora: nada. Não teve ela destino diferente daquele de todo o casario de Goiás: suas rótulas e seus muxarabiês tiveram morte decretada por D.João VI, para benefício pecuniário dos recém-instalados produtores de vidro do Rio de Janeiro: saem as rótulas e gelosias de tradição secular árabe, resguardadoras da intimidade e dos segredos; entra a vidraça de guilhotina inglesa, devassadora da privacidade, mas alvissareira da luz que não nos davam por meio da educação e da ciência. O cutelo do cósmico tempo e dos humanos mandos privou a casa dos seus adornos, da sua pele, tal como os algozes de São Bartolomeu – o outro, o homônimo apóstolo mártir – o esfolaram um dia. O muxarabiê que existe agora não é só um dispositivo útil de aeração da casa restaurada e indício didático do que ela fôra um dia, mas também uma bandeira erguida em reparo de arbitrariedades. Eis aí, pois, a matéria da casa, reduzida à sua branca essência de puros ossos.
Veja que é sobre o alicerce dessa alva ossatura original que repousa a casa-monumento que você veio visitar – uma das antigas moradas do Bartolomeu andarilho, desbravador de sertões, anhangüera conquistador de povos, descobridor de minas, semeador de arraiais e vilas, e alargador de império. – Não adianta buscar, forasteiro! Nenhum desses atributos vê-se na casa em si. Para achar o que procura, melhor é mirar afora. Com a vista larga, é de costas para a casa que você compreenderá o que significa o sóbrio monumento. Você reconhecerá, aqui, a Villa-Boa de Goyazes como colônia paulista, uma das filhas sobreviventes da prolífica Santanna do Parnahyba, orgulhosa da herança dos traços atávicos que se vêem em suas construções modestas e de seu sotaque caipira que se ouve em suas modinhas. Se aprende a ver e a ouvir, perceberá quão diferente é das cidades mineiras coetâneas e vizinhas. Mais para lá, verá duas capitais, uma do estado e outra do país, modernas e airosas, saídas das pranchetas do sonho e da vontade. Acolá, bem mais além, a oeste, vislumbrará um Brasil gigante, um mundaréu além-Tordesilhas, lusófono, acrescido de matas, de bichos, de rios, de minérios, e de povos. Se você se despe, com humildade e sabedoria, da malfazeja presunção ufana inculcada em escola, compreenderá também que o monumento sublinha a exterminação de Goyazes, Avá-Canoeiros e Panará-Caiapós, bem como o desapossar de Auwẽ-Xavantes, Akwẽ-Xerentes, Iny-Karajás, Mehin-Krahôs e tantos outros Jê-Tapuia, uma gente contumaz, altiva, e renitente. Diferente do Tupi e do português da costa, ocupados a espreitar o exterior e a esperar dos largos horizontes do mar aberto, o Tapuia cultiva e ensina o desdém da esperança no de fora. Para a gente daqui, adiante é só mais para dentro: do mundo e de nós mesmos. Triste, o monumento traz a jaça de anunciar também o avançar da monocultura, o minguar dos cerrados e campos, o afogar dos buritizais e veredas, e o derrancar de córregos e rios. O monumento é só isso: a um só tempo a primeira casa daqui, construída em terra alheia, sem agradecimento ou pedido de desculpas, e o marco avançado da expansão de nossas fronteiras, onde se plantou bandeira. Compreende? A alma do monumento oscila entre nossos públicos vícios e virtudes.
– Ô-de-fora, achegue e adentre, e descobrirá que mais que monumento, a casa é também morada. Esta é a casa da Vó Maria, onde ela reside feliz com seu papagaio e onde vivi minha infância. Vê as inusitadas conversadeiras, como bancos de alvenaria recortados na própria parede e apegados às janelas? Nelas, ainda revejo assentadas, em colóquio sóbrio cochichado entre inflexões desuetas, minha bisavó Alexandrina (– A sua bênção, vó ‘Xandrina) e Dona Carola, veneráveis. É certo que você não as vê: memória é capacidade, faculdade apenas. Para lembrar há-de haver registro, recordação e retentiva; só, bem depois, relembrança. Relembro. Dona Carola recontava as origens da casa: – “... mandada erguer pelo Anhangüera, nos primórdios, para vivenda e gestão da faina garimpeira... ficada em mãos de padre por muitos anos... passada a Sêo Nazareno, parente meu, antes que Juca a houvesse como pagamento por haver instruído inventário de tia-velha...” Falava com firme autoridade de legítima Camargo e Ortiz que foi, descendente direta dos bandeirantes fundadores, chegados juntos com Bartolomeu, empunhando arcabuz e espada, encourados com gualteira e gibão de armas. Aprendi com elas que os sulcos de rugas nonagenárias ocultam mais saberes e mistérios do que cabem em rios fundos como o Tocantins, e que podem desaguar em oceanos ainda mais anchos e profundos. Acompanho-lhe ao terreiro e ao seu poço em alcantaria. Cada vez que passo aqui, confesso-lhe, coço a cabeça e vem-me o perfume de uma florada distante. Junto ao poço e à sombra dos arbustos do jardim, minha avó me catava as obstinadas lêndeas, no colo coberto por fralda engomada. Para mim, entenda, piolho cheira a flor de sabugueiro. Compreendi assim, meditado em cabecinha confusa e em comichão, que o mal vem sempre misturado com o bem, e que é uma trabalheira separar um do outro, para andar seu direito caminho. Passe, venha à alcova, que lhe mostro não só o valor do que há, mas também o de que não há. Vê aquele buraco entre as telhas, a ripa e o caibro? Aquilo não é só goteira de casa-de-pobre. Nas águas dum ano que me viu menino, foi por onde vieram o chorro e o esborrifo que encheram a poça de lama no chão de terra-batida do meu quarto que foi o primeiro mar em que naveguei. Um mar imaginado distante e tremendo, como o entreouvido em conversa de gente grande, e que desde então ansiei. Na seca, foi pelo mesmo vão que entrou o raio de luz que me permitiu folhear e ler, fascinado, meu primeiro livro, e descobrir que eu podia me comunicar com espíritos. Foi Dona Rita, outra Camargo, quem me ensinou a estudar: – “Para ler, há que interpretar. Entende, Leonardo? Desconfie do que lê. Só quando se faz a exegese é que o livro deixa de ser só do autor e passa a ser também da gente”. Eu era tão pequenino e meu entendimento não dava alcance. Por isso, só decorei, no ato, para saber mais, bem depois, quando pude afinal conversar com Homero, Dante, Cervantes, Proust, Mann e Guimarães Rosa, de homem a homem, sem o embaraço da confusão das línguas ou da diacronia. Não compreende o porquê de tantos e insignificantes pormenores? Para mim, saiba, é no fiapico do vivido, particular, que se revela o espírito da morada, o que a anima e lhe dá sentido.
A casa, o monumento e a morada, mostrei-lhe quase tudo, mas separado. Quando cruzar a ponte e subir a estrada do morro, de regresso aos seus, volte ainda o olhar e descubra, afinal, como a verdadeira casa se reflete inteira, nobre, real, bela e íntegra, na água do rio Vermelho. E ponha as mãos em conchas, alargando as orelhas. Quem sabe ouvirá vir do interior da morada, filtrado, no recôndito da gelosia e longe dos olhos indiscretos da rua, uma prece sussurrada a Mnemosine: – Deusa mãe das Musas e de toda arte, uma só coisa lhe imploro, contrito. Queira que boas e bem-intencionadas almas não transformem a casa, um dia, em Museu. Só a Senhora – personificação da Memória – pode compreender que ao deixar de ser morada para ser elevada tão-somente à ilusória distinção de monumento, a casa abrigará apenas esquecimento, olvido e morte. Permita que outros meninos e meninas possam conviver com os fantasmas que a habitam, pois essa é da casa a maior riqueza. E que eles possam ter o privilégio, como eu, de levá-la sempre às costas, como caramujo e tartaruga, pelas florestas, pelos rios e mares por onde vagarem, empunhando suas próprias bandeiras.
Leonardo Lacerda
Genebra, 6 de maio de 2010
Leonardo Lacerda é neto da atual moradora da Casa de Bartolomeu Bueno na Cidade de Goiás, onde viveu sua infância e fincou suas raízes. Ele tem uma vivência particular que estofa sua interpretação histórica e poética do imóvel. Foi ele o responsável pela restauração do monumento e pela inserção do muxarabiê na sua fachada. Leonardo mora na Suiça e nos comunicamos apenas por e-mail, entretanto sinto que o muxarabiê nos aproxima. Convidei-o para fazer este texto para o catálogo por acreditar que seu depoimento acrescenta muito à leitura de minha obra.
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