sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009
2ª Bienal do Mercosul. 1999-2000
Vista da minha instalação na 2ª Bienal do Mercosul, montada no antigo armazém do Cais do Porto, à margem do Rio Guaíba, em Porto Alegre.
A curadoria da 2ª Bienal do Mercosul foi realizada por Fábio Magalhães e Leonor Amarante.
A obra foi realizada com borracha, algodão oxidado, sabão artesanal, cabelo humano, fio dourado, agulhas banhadas a ouro.
As fotos acima são de Tiago Rivaldo.
Cores, dores
e ferramentas do devir
Bienal do Mercosul que se encerra hoje em Porto Alegre flagra a inquietude técnica da arte atual
Texto de Gleber Pieniz
A 2ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul que encerra hoje em Porto Alegre, ao contrário da sua primeira edição, não se restringiu a um único tema. O curador geral Fábio Magalhães foi claro ao afirmar que a mostra deu ênfase aos aspectos contemporâneos da arte - atividade que está mais preocupada em aprofundar seus dilemas do que resolver direcionamentos temáticos. Mais de 120 de artistas do Brasil, Argentina, Colômbia, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia mostraram que estas contradições, se ainda não apresentam soluções satisfatórias, estimulam a criatividade a romper limites e a buscar novos padrões para estabelecer uma manifestação mais rica em valores para os próximos tempos.
Tunga, com "True Rouge", faz uma metáfora do corpo humano através de intrincada rede de telas, fios, esponjas, ganchos e garrafas. Na abertura da Bienal, o brasileiro fez escorrer entre estas peças da obra um líquido vermelho e pegajoso - fluidos vitais em atividade. Também ilustrando a vida (agora pela ótica social), a argentina Nora Aslan apresenta uma instalação composta de berços, luzes e um painel que expõe contrastes entre a ternura e a barbárie provocados pela violência. Contundente, "Ab-sur-do", constrói significado através de uma refinada ironia. Mais direto é Luiz Zerbini, cuja instalação em madeira e mármore reproduz o torso do artista e serve de tema para que a fotografia recrie seus detalhes na forma de uma orelha, de um bebê e de uma chupeta. Discreta, Lucia Koch faz com que seu "O Gabinete" em acrílico projete puras e geométricas cores de Mondrian sobre as pessoas que o visitam sob o sol da tarde. De uma das janelas desta instalação, é possível ver "Sky Drawing" (escultura gigante de Márcia Grostein) literalmente riscar o céu sobre o Guaíba com sua ponta fosforescente.
"Doador", de Élida Tessler, é um corredor cujas paredes foram forradas com ralador, computador, aspirador, coador e outros 223 objetos com nomes terminados em "dor", readymade (ou uma sátira?) levado às últimas conseqüências em número e conceito para compor uma das instalações mais lúdicas de toda a Bienal, tão divertida quanto as esculturas do colombiano Nadin Ospina em "El Bosque de los Ídolos": seus tótens têm a base esculpida segundo a estética indígena, mas as cabeças - nas figuras de Mickey, Minnie e Bart Simpson - são ícones da cultura pop. Igualmente irônica (embora com carga maior de acidez), em "Trofeos de Caza" a chilena Caterina Purdy destila sarcasmo contra as pessoas que usam peles, transformando carcaças de cândidas ovelhas em mochilas e bolsas de mão. A uruguaia Andrea Finkelstein em "Nobody Calls me by my Name" usa cerâmica e arame para criar exóticos objetos que, como a própria artista sugere, jamais serão chamados pelo nome (se é que possuem algum). Já o brasileiro Marepe denomina "A Bica" um verdadeiro labirinto em alumínio destinado a recolher a água das chuvas, criando um objeto de apurada simetria e despojada beleza.
PASSADO E PRESENTE
Em "Construções de Afeto", Divino Sobral constrói rosários, tótens e relíquias com o sebo, os pêlos e os cabelos do homem, materiais que deixam seu valor individual em segundo plano para resgatar conceitos coletivos como religiosidade e ancestralidade. O uruguaio Federico Arnaud reconstrói em "El Juego de los Milagros" a mesma ponte histórica através da religião fazendo de santos, crucifixos e ostensórios as figuras principais de objetos de uso contemporâneo como uma cadeira, um relógio e mesmo uma mesa de pebolim. Em "La Última Cena", a uruguaia Águeda Dicancro cruza a referência religiosa predominante com a abordagem filosófica, lembrando que tanto Sócrates quanto Jesus tiveram uma última refeição com seus seguidores. Para reconstituir estas despedidas, a artista usou vidro em uma mesa despedaçada e em 12 cadeiras separadas por um facho de luz que sugere, ao mesmo tempo, ausência e presença.
"El Punto de Vista", da uruguaia Rita Fischer, usa véus sobrepostos para esconder texturas e recortes, causando espanto em quem se aventurar com mais curiosidade para dentro de sua instalação de paredes vermelhas. Outro artista que provoca estranhamento é Flávio Emanuel com a instalação "Os Teleguiados", seqüência de sensações visuais e sonoras em uma sala de alvas paredes maculadas por insetos, asas de galinha e ovos aprisionados em arame, um mundo que pode ser percorrido por intrigantes carros com cérebro de boi guiados por controle remoto.
POTENCIAL CORPÓREO
O boliviano Zapata investe na pintura figurativa e acadêmica, mas sua abordagem para a série "Identidades Ajenas" apresenta resultados surpreendentes de volume, luz e forma, aproximando sua estética da arte contemporânea e da fotografia graças ao despojamento dos temas e à desconcertante simplicidade com que flagra seus modelos. Valia Carvalho, sua conterrânea, também faz do corpo temática, embora eleja a instalação como instrumento para resolver seus impasses na pintura, na fotografia e na escultura. "Yo soy, I am" é um dos ambientes mais desconfortáveis da Bienal e mostra a própria artista como protagonista de um processo de descontrução: centenas de fotos na parede dão significado às vaginas hemorrágicas expostas em uma velha cama cirúrgica, uma crítica à exploração do corpo feminino e à valorização pornográfica da beleza. Não tão rigoroso, mas tão surrealista quanto Dali, Marcelo Suaznabar centra a reflexão nas figuras de um cavalo e dos relógios no políptico em tela "Últimos Minutos". Ao contrário do artista espanhol, o pintor boliviano busca a essência das linhas e das formas, embora deva ao mestre todo seu catálogo de citações (incluindo objetos aleatórios, os numerosos seres humanos em tarefas específicas e os já citados relógios).
Com o objetivo de estimular a reflexão individual sobre sonhos e projetos pessoais, o chileno Gonzalo Diaz propõe a arquitetura como metáfora. "Al Pie de la Letra" é a obra que ocupa a maior área da Bienal e remete a uma catedral em construção, colosso de madeira por onde o público pode perambular e sentir-se só, pequeno, abandonado. Concretizando o impossível, "A Escada" de Mauro Fuke faz referência direta aos planos e pontos de fuga imaginários de M.C. Escher e encontra nos trabalhos de Félix Bressan o seu equivalente no "mundo dos homens comuns". Ao contrário de Fuke e Diaz, que desafiam as possibilidades da arquitetura como matéria para a arte, Bressan encontra na descontrução de ferramentas do cotidiano o caminho para a descoberta de novas formas, tornando possível mesmo transformar uma sala em labirinto graças às espirais de uma picareta.
Publicado no jornal A Notícia. Joinville, Domingo, 9 de janeiro de 2000.
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