sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O Jardim das jabuticabeiras

Poema de Divino Sobral

“– Mas, há uma árvore, entre tantas outras, uma;
Um campo, que por mim foi contemplado...
Ambos me lembram algo que é passado.”
William Wordsworth.

“E, apesar disso tudo, a natureza nunca se esgota;
Todas as coisas nela vivem num frescor renovado;”
Gerard Manley Hopkins.

”O terreiro rústico participava desses encantamentos.”
Cora Coralina.

Paisagem iluminada e quente do sertão.
Os ponteiros do relógio marcam dois tempos.
Revolvem recordações do quintal.
O esquecido jardim das jabuticabeiras
Relembrado nos galhos secos
Do corpo vegetal.

Paisagem de natureza morta feita de restos e recordações,
Conservadas na floração de inflorescências da memória.

Árvores envolvidas por fios de cores,
Enroladas por lã,
Mumificadas em camadas de tempo
Do que foi, do que é e do que virá.
Na secura morta dos galhos rebrotam reminiscências
de um sonho da primeira infância:
A cor envolve, me persegue,
E eu capitulo.

Camadas de lembranças coloridas,
Roupas listadas.
Azul, verde, amarelo, alaranjado, vermelho, roxo, rosa,
Vestem a paisagem como a um quadro de Matisse,
Vestem galho a galho de matizes corais.
Pés de cor excitam a íris, dilatam as pupilas, iluminam os olhos.

Paisagem de natureza morta feita de restos e recordações,
Conservadas na floração de inflorescências da memória.

Árvore, genealogia ramificada em raiz e tronco e galhos e folhas
e flores e frutos e sementes.
Mitologia da vida e da morte simbolizada na
Casca/pele que se transforma,
Conforme os ritos das estações,
Conforme os ritmos do esquecimento,
Conforme o sonho, a fantasia e a imaginação
Acordam repentinas recordações matinais.

Jardim das jabuticabeiras florido, frutado.
Delicada beleza, doçura singular,
Envelhece e se renova a beira dos veios de água
Que como rios cortam o quintal,
Desenham territórios nas minhas recordações.

E me lembro...

Jabuticabeira nascida no horto
Que bordeja o mar de norte a sul.
Trazida ao interior
Nas cargas de bandeirantes,
Nas costas dos negros,
Nas matulas dos tropeiros
Nas capangas de imigrantes
Na bagagem dos que formaram a origem de Goiás.
Plantadas nos primeiros arraiais,
Primeiras fazendas e
Primeiros quintais.

Árvore difícil, caprichosa, apreciada.
Outrora, doze anos virgem, até a primeira florada.
Então, após as primeiras chuvas primaveris,
A fertilidade aflorava:
Pompons suavemente amarelados, encardidos,
Transformavam o caule e os galhos em vestido de noiva
Ornado ricamente, macio, perfumado, inebriante às abelhas.
Fecundadas as flores, a primeira frutada:
Árvore alegre, carregada no caule e nos galhos
De pequenas bolinhas que
Nascem verdes,
Crescem roxas,
Amadurecem pretas arroxeadas.
A casca brilhante
Arrebenta na boca,
Transborda doce e saboroso néctar
Líquido amniótico que guarda a semente,
Memória do passado, promessa do porvir.

No jardim, jabuticaba se come de baixo para cima.
Primeiro disputa-se as maiores, depois as menores.

Saudades dos tempos que não vi jamais,
Um cheiro antigo exala forte ao fim da tarde.
Do fundo sujo da minha algibeira de velho menino,
Retiro uma jabuticaba ainda fresca.

Paisagem de natureza morta feita de restos e recordações,
Conservadas na floração de inflorescências da memória.

Cultivadas no jardim duas espécies:
Paulistinha secular à beira dos muros pétreos,
Sombra e licor aos sabiás, bolas ao apetite dos meninos;
Sabará, herança de sabor mineiro plantada no fundo dos quintais,
Retratos desbotados que ainda não esqueci,
Vozes de parentes mortos que ainda escuto.

A colheita da jabuticaba.
Tradição de antigas e novas gerações,
Origem perdida na imemorialidade
Dos rituais da fertilidade,
Das celebrações dos campos renovados
De alimento e prosperidade abundantes.
Lembranças que afloram no jardim da memória rural.
Nostalgia da natureza e bucolismo do interior.
Pássaros cantam sem ser vistos.

Eu me lembro do que não vivi...

Meu avô – que não conheci,
Mandava enfeitar uma árvore
Com fitas e cores, prendas e brindes
Para saudar São João.

Esqueceram...
Algo se perdeu.

O jardim das jabuticabeiras:
Paisagem de natureza morta feita de restos e recordações,
Conservadas na floração de inflorescências da memória.
Epifania totêmica medrada nas paredes.

William Wordsworth.
Ode: Prenúncios de Imortalidade em Recordações da Primeira Infância. In: Poesia Selecionada. Tradução de Paulo Vizioli. São Paulo, Edições Mandacaru, 1988. Pág 57

Gerard Manley Hopkins.
A Grandeza de Deus. Pág. In: Poemas. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. São Paulo, Companhia das Cetras, 1989. Pág. 81.

Cora Coralina.
As Maravilhas da Fazenda Paraíso. In: Melhores Poemas. São Paulo, Global, 2004. Pág. 194.


Goiânia, setembro-outubro de 2008.

Este poema foi escrito diretamente sobre a parede da sala de exposição, na mostra coletiva Superfícies da Memória, curada por Sylvia Werneck e Lisbeth Rebolo no Museu de Arte Contemporânea da USP, no Parque Ibirapuera, São Paulo, 2008 – 2009.

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