sexta-feira, 4 de junho de 2010

A Minha e a Casa de Bartolomeu - Texto de Leonardo Lacerda

Desenho retratando Bartolomeu Bueno da Silva publicado na contracapa do catálogo "A Cidade de Goiás e o escultor goiano Veiga Valle", editado pelo MASP em 1978.

A Minha e a Casa de Bartolomeu

Objets inanimés avez-vous donc une âme
Qui s'attache à notre âme et la force d'aimer?
Lamartine


Pede-me que lhe apresente a casa do bandeirante Bartolomeu Bueno. Não aquela da sua origem, a de Santana de Parnaíba, mas a outra, a do seu destino, a do arredado Arraial de Santana, renomeado Vila Boa de Goiás em honra dele e de seus feitos. Mas pergunto-lhe, antes: - Como posso lhe fazer visitar a morada da minha infância como se ela pertencesse a outrem? Qual casa é a dele, e qual é a minha? E se eu, em guisa de escape, lhe expusesse tão-somente a casa da rua da Cambaúba n°30, livre objeto, sem dono? Mas tal casa assim, nem dele nem minha, existe?

Que vejamos então, e primeiro, a casa. À dura luz do meio-dia do mês de setembro, o branco da sua caiação quase cega o transeunte, e a reverberação do calor das lajes da calçada e sarjeta a fazem vibrar, leve, irreal como miragem. A casa da ponte da Cambaúba vige à beira-rio no torpor do mormaço e sobrevive à pasmaceira de séculos. Casa vasta de três lances, os cheios de sua fachada são paredões espessos em taipa de pilão, enquadrados por vigões de aroeira e protegidos do rigor das intempéries pelo velho telhado já arreado, arrematado em beiral bem avançado com encachorramento em madeirame lavrado. Seus vazios são dois janelões pesados de duas folhas cada, marcados por largos quadros de madeira, uma porta rangente guarnecida de aldravas e bandeira com vidraça colorida, em alto de escadaria, mais um largo portão que dá acesso ao porão da parte assobradada, e um muxarabiê que o encima. O visitante incauto crê ver nela a casa tal como levantada em princípios do século XVIII, no afã da descoberta do ouro prometedor que fez fulgir tanta talha-dourada na distante Lisboa; e que despertou no perdulário D. João V vãs ambições desmesuradas largadas inconclusas. – Ô-de-fora, não se deixe iludir: o que você vê são restos! A vetusta casa já teve seus nobres adereços: as rótulas de treliças que guarneciam os janelões, encimadas por sobrevergas cinzeladas; um largo muxarabiê que resguardava, juntas, as janelas gêmeas que dão para o rio, no lado assobradado; e o interior assoalhado e com forro armado em saia-e-camisa. Procure nos marcos das janelas, e verá ainda os cravos que sustentavam as rótulas, como testemunhos. Assim, como objeto concreto, a casa em si é noves-fora: nada. Não teve ela destino diferente daquele de todo o casario de Goiás: suas rótulas e seus muxarabiês tiveram morte decretada por D.João VI, para benefício pecuniário dos recém-instalados produtores de vidro do Rio de Janeiro: saem as rótulas e gelosias de tradição secular árabe, resguardadoras da intimidade e dos segredos; entra a vidraça de guilhotina inglesa, devassadora da privacidade, mas alvissareira da luz que não nos davam por meio da educação e da ciência. O cutelo do cósmico tempo e dos humanos mandos privou a casa dos seus adornos, da sua pele, tal como os algozes de São Bartolomeu – o outro, o homônimo apóstolo mártir – o esfolaram um dia. O muxarabiê que existe agora não é só um dispositivo útil de aeração da casa restaurada e indício didático do que ela fôra um dia, mas também uma bandeira erguida em reparo de arbitrariedades. Eis aí, pois, a matéria da casa, reduzida à sua branca essência de puros ossos.

Veja que é sobre o alicerce dessa alva ossatura original que repousa a casa-monumento que você veio visitar – uma das antigas moradas do Bartolomeu andarilho, desbravador de sertões, anhangüera conquistador de povos, descobridor de minas, semeador de arraiais e vilas, e alargador de império. – Não adianta buscar, forasteiro! Nenhum desses atributos vê-se na casa em si. Para achar o que procura, melhor é mirar afora. Com a vista larga, é de costas para a casa que você compreenderá o que significa o sóbrio monumento. Você reconhecerá, aqui, a Villa-Boa de Goyazes como colônia paulista, uma das filhas sobreviventes da prolífica Santanna do Parnahyba, orgulhosa da herança dos traços atávicos que se vêem em suas construções modestas e de seu sotaque caipira que se ouve em suas modinhas. Se aprende a ver e a ouvir, perceberá quão diferente é das cidades mineiras coetâneas e vizinhas. Mais para lá, verá duas capitais, uma do estado e outra do país, modernas e airosas, saídas das pranchetas do sonho e da vontade. Acolá, bem mais além, a oeste, vislumbrará um Brasil gigante, um mundaréu além-Tordesilhas, lusófono, acrescido de matas, de bichos, de rios, de minérios, e de povos. Se você se despe, com humildade e sabedoria, da malfazeja presunção ufana inculcada em escola, compreenderá também que o monumento sublinha a exterminação de Goyazes, Avá-Canoeiros e Panará-Caiapós, bem como o desapossar de Auwẽ-Xavantes, Akwẽ-Xerentes, Iny-Karajás, Mehin-Krahôs e tantos outros Jê-Tapuia, uma gente contumaz, altiva, e renitente. Diferente do Tupi e do português da costa, ocupados a espreitar o exterior e a esperar dos largos horizontes do mar aberto, o Tapuia cultiva e ensina o desdém da esperança no de fora. Para a gente daqui, adiante é só mais para dentro: do mundo e de nós mesmos. Triste, o monumento traz a jaça de anunciar também o avançar da monocultura, o minguar dos cerrados e campos, o afogar dos buritizais e veredas, e o derrancar de córregos e rios. O monumento é só isso: a um só tempo a primeira casa daqui, construída em terra alheia, sem agradecimento ou pedido de desculpas, e o marco avançado da expansão de nossas fronteiras, onde se plantou bandeira. Compreende? A alma do monumento oscila entre nossos públicos vícios e virtudes.

– Ô-de-fora, achegue e adentre, e descobrirá que mais que monumento, a casa é também morada. Esta é a casa da Vó Maria, onde ela reside feliz com seu papagaio e onde vivi minha infância. Vê as inusitadas conversadeiras, como bancos de alvenaria recortados na própria parede e apegados às janelas? Nelas, ainda revejo assentadas, em colóquio sóbrio cochichado entre inflexões desuetas, minha bisavó Alexandrina (– A sua bênção, vó ‘Xandrina) e Dona Carola, veneráveis. É certo que você não as vê: memória é capacidade, faculdade apenas. Para lembrar há-de haver registro, recordação e retentiva; só, bem depois, relembrança. Relembro. Dona Carola recontava as origens da casa: – “... mandada erguer pelo Anhangüera, nos primórdios, para vivenda e gestão da faina garimpeira... ficada em mãos de padre por muitos anos... passada a Sêo Nazareno, parente meu, antes que Juca a houvesse como pagamento por haver instruído inventário de tia-velha...” Falava com firme autoridade de legítima Camargo e Ortiz que foi, descendente direta dos bandeirantes fundadores, chegados juntos com Bartolomeu, empunhando arcabuz e espada, encourados com gualteira e gibão de armas. Aprendi com elas que os sulcos de rugas nonagenárias ocultam mais saberes e mistérios do que cabem em rios fundos como o Tocantins, e que podem desaguar em oceanos ainda mais anchos e profundos. Acompanho-lhe ao terreiro e ao seu poço em alcantaria. Cada vez que passo aqui, confesso-lhe, coço a cabeça e vem-me o perfume de uma florada distante. Junto ao poço e à sombra dos arbustos do jardim, minha avó me catava as obstinadas lêndeas, no colo coberto por fralda engomada. Para mim, entenda, piolho cheira a flor de sabugueiro. Compreendi assim, meditado em cabecinha confusa e em comichão, que o mal vem sempre misturado com o bem, e que é uma trabalheira separar um do outro, para andar seu direito caminho. Passe, venha à alcova, que lhe mostro não só o valor do que há, mas também o de que não há. Vê aquele buraco entre as telhas, a ripa e o caibro? Aquilo não é só goteira de casa-de-pobre. Nas águas dum ano que me viu menino, foi por onde vieram o chorro e o esborrifo que encheram a poça de lama no chão de terra-batida do meu quarto que foi o primeiro mar em que naveguei. Um mar imaginado distante e tremendo, como o entreouvido em conversa de gente grande, e que desde então ansiei. Na seca, foi pelo mesmo vão que entrou o raio de luz que me permitiu folhear e ler, fascinado, meu primeiro livro, e descobrir que eu podia me comunicar com espíritos. Foi Dona Rita, outra Camargo, quem me ensinou a estudar: – “Para ler, há que interpretar. Entende, Leonardo? Desconfie do que lê. Só quando se faz a exegese é que o livro deixa de ser só do autor e passa a ser também da gente”. Eu era tão pequenino e meu entendimento não dava alcance. Por isso, só decorei, no ato, para saber mais, bem depois, quando pude afinal conversar com Homero, Dante, Cervantes, Proust, Mann e Guimarães Rosa, de homem a homem, sem o embaraço da confusão das línguas ou da diacronia. Não compreende o porquê de tantos e insignificantes pormenores? Para mim, saiba, é no fiapico do vivido, particular, que se revela o espírito da morada, o que a anima e lhe dá sentido.

A casa, o monumento e a morada, mostrei-lhe quase tudo, mas separado. Quando cruzar a ponte e subir a estrada do morro, de regresso aos seus, volte ainda o olhar e descubra, afinal, como a verdadeira casa se reflete inteira, nobre, real, bela e íntegra, na água do rio Vermelho. E ponha as mãos em conchas, alargando as orelhas. Quem sabe ouvirá vir do interior da morada, filtrado, no recôndito da gelosia e longe dos olhos indiscretos da rua, uma prece sussurrada a Mnemosine: – Deusa mãe das Musas e de toda arte, uma só coisa lhe imploro, contrito. Queira que boas e bem-intencionadas almas não transformem a casa, um dia, em Museu. Só a Senhora – personificação da Memória – pode compreender que ao deixar de ser morada para ser elevada tão-somente à ilusória distinção de monumento, a casa abrigará apenas esquecimento, olvido e morte. Permita que outros meninos e meninas possam conviver com os fantasmas que a habitam, pois essa é da casa a maior riqueza. E que eles possam ter o privilégio, como eu, de levá-la sempre às costas, como caramujo e tartaruga, pelas florestas, pelos rios e mares por onde vagarem, empunhando suas próprias bandeiras.

Leonardo Lacerda
Genebra, 6 de maio de 2010

Leonardo Lacerda é neto da atual moradora da Casa de Bartolomeu Bueno na Cidade de Goiás, onde viveu sua infância e fincou suas raízes. Ele tem uma vivência particular que estofa sua interpretação histórica e poética do imóvel. Foi ele o responsável pela restauração do monumento e pela inserção do muxarabiê na sua fachada. Leonardo mora na Suiça e nos comunicamos apenas por e-mail, entretanto sinto que o muxarabiê nos aproxima. Convidei-o para fazer este texto para o catálogo por acreditar que seu depoimento acrescenta muito à leitura de minha obra.

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