sábado, 28 de fevereiro de 2009

Sobre meus trabalhos - Texto de Divino Sobral.


Obra de Divino Sobral. "Da série O tempo é água". 1995. Borracha, cobre, arame, algodão, capim e cabelo. Foto:Rogério Flori.

Texto de Divino sobral

O propósito desses trabalhos é eriçar o território poético da memória, abrir os arquivos da mitologia particular, expor seu fascínio pelo tempo e pela arqueologia de reminiscências coletadas ao longo da existência, sua atração pelos enigmas do corpo arquetípico e pelos objetos que com ele se relacionam; amalgamar esses arquivos com registros da bagagem cultural coletiva, recuperando materialidades atávicas e procedimentos artesanais ancestrais, impregnados pelo sentido religioso de transformação simbólica.

“O tempo é água” propõe a água como elemento evidenciador da passagem sobre a matéria, envelhecimento, corrosão e oxidação como estágios pelos quais passa a recordação; visualiza signos subtraídos a um palimpsesto, formando uma escritura tridimensional que demarca o espaço onde a memória mostra sua onipotência.

“Entre duas peles, uma memória do corpo” trabalha com a correspondência, por meio do pêlo humano, entre a pele orgânica que reveste o corpo e a pele artificial do tecido que o recobre e o protege; liga a pilosidade à roupa e à objetualidade corporal, resgata o sentido do desejo, do prazer e também da dor, exala a intimidade erótica do fetiche ao mesmo tempo em que gravita, como um ex-voto, em torno do sagrado

Publicado originalmente no catálogo da exposição “Antarctica Artes com a Folha. São Paulo, Cosac & Naify, 1998.

As obras abaixo são da série "Entre duas peles uma memória do corpo". Foram realizadas em 1997 com cabelo humano costurado sobre fragmentos de roupas.













Hodiernos. Texto de Carlos Sena


O tempo é água. 1997. Escultura em borracha e algodão oxidado.
Foto: François Calil.

Texto de Carlos Sena

"Um dos artistas mais versáteis do nosso circuito, Divino Sobral, atua também como curador e crítico de arte. Sua obra iniciou-se com pesquisas objetuais e propostas de instalação entranhadas nas heranças populares; mas depois o artista deslocou-se para outro campo desenvolvendo um trabalho que se fez marcado pela fusão do popular com o erudito, pela artesania obsessiva, pela manufatura exacerbada e pela preocupação com os registros temporais e memoriais.
Lançou mão de inúmeros materiais, procedimentos e linguagens. Elaborou esculturas pendentes, orgânicas e de configuração linear, empregando borracha, algodão, palha de aço e até capim. Pesquisou o agregamento do cabelo humano a fragmentos de roupas evocando uma lembrança erótica do corpo. Também enrolou contas de cabelos de 80 pessoas com sua saliva, fundindo uma memória corporal coletiva. Desenvolveu esculturas com sabão artesanal que se posicionavam como ruínas arquitetônicas. Elaborou desenhos, pinturas e objetos utilizando apenas o processo de oxidação para evocar o esquecimento.
A proximidade cotidiana com o exercício do texto, levou-o a agregar à sua obra reflexões sobre o universo da escrita. Já há algum tempo cria num work in progress uma escritura arcaica com centenas de pequenos objetos oxidados. Obstruiu o conteúdo de livros utilizando encáustica e chumbo. Transcreveu fragmentos literários em lençóis e toalhas. Atualmente compõe desenhos que formam palimpsestos com a sobreposição de diversas narrativas, e pesquisa as possibilidades da performance e da land art."

Texto publicado no catálogo da exposição “Hodiernos”. Galeria da faculdade de Artes Visuais / UFG, Goiânia, 2003.

Trocas Vocabulares ou...contornando as bordas. Texto de Marília Panitz.



"Na acumulação mnêmica de Divino Sobral, a construção do distanciamento temporal se faz pelo recolhimento do vestuário já abandonado pelo uso e pela impossibilidade de permanência de certa artesania na fatura das peças, (e este exercício parece ser tributário de outros dois, elaborados pelo artista: o de fiar e tecer cabelos e o de recobrir o papel com palavras que constroem paisagens interiores). As mantas de bebê e as camisas, as fronhas e os lençóis de linho bordado, os lenços (esses objetos definitivamente substituídos pela efemeridade do papel), todos submetidos àquilo de que sempre foram poupados: a ação da ferrugem que os colore desenhando mapas de um tempo suposto. Sobre esse desenho, um outro, que utiliza, como fonte, velhos catálogos de venda, figuras já perdidas no (seu) tempo e ressuscitadas na obra somente para confirmar sua anacronia: linha azul, linha castanha. VER, SONO, LÍRIOS, TABU, LIVRO ou um A (como objeto de desejo?)... Os monogramas bordados DS, DS, DS... E, antes do encerramento dos trabalhos nas caixas transparentes, as pérolas. Algumas associadas em colares, linhas de pontuação. Outras, isoladas como pontos de basta, “amarram” as partes do objeto, evitam deslizamentos... Criam metáforas."

Texto: Marília Panitz
Publicado originalmente no catálogo da exposição “O Centro na Borda”. Galeria Arte em Dobro, Rio de Janeiro, 2006.





























































Presente Líquido. Texto de Juliana Monachesi




Vista da exposição Presente Líquido na Casa Andrade Muricy, Curitiba, 2006.


"No horizonte de uma sociedade líquida tudo é mutável. A Manhattan de cartão postal da modernidade sólida pretenderia ostentar perenemente as duas torres mais altas do mundo. A Corrida pela engenhosidade e excelência arquitetônicas de arranha-céus já havia desbancado o World Trade Center do topo da lista com edifícios ensandecidamente mais altos em Taiwan e na Malásia. Mas a Modernidade líquida das redes econômicas e políticas de poder, operando em permanente fluxo, sem fronteiras e sem identidades definidas, apagou do horizonte de Nova York o maior ícone da solidez de uma sociedade e de um tempo, depois da queda das torres, definitivamente encerrados no passado.

O território é substituído pela mobilidade, o espaço dos fluxos sobrepõe-se ao “espaço dos lugares”, ao lugar fixo da memória geográfica e cultural, a ausência de fronteiras tira o sentido da crítica moderna aos não-lugares; em um mundo de informações fluídas e permeabilidade desenfreada, tudo e todos se contaminam do espírito do tempo, mesmo que à própria revelia. Nada nem ninguém estão imunes. A identidade fixa dá lugar a infindável mutabilidade dos quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções. O desmonte dos grandes meta-relatos da modernidade (o Iluminismo, o Marxismo e as utopias do século 20) resultou em uma sociedade que não aspira à permanência e em indivíduos cujas relações e ambições são temporárias.

Dado este pano de fundo de uma condição humana fluida e volátil, de um contexto cultural pautado na leveza e de um presente líquido, como é que os artistas contemporâneos têm se posicionado na construção de suas poéticas? Tomemos os bordados de Divino Sobral, engendrados pela reflexão sobre “a passagem do tempo que gera o desgaste das coisas e afetos, a formação da memória e os processos de lembrança e de esquecimento”, nas palavras do artista. Estas obras são feitas por meio da imersão de tecidos em água acrescida de materiais oxidantes. O material de trabalho de Sobral é artificialmente “envelhecido” para disparar no observador o sentido fraturado da memória.

A partir do conceito poético que o artista denomina “O tempo é água”, a passagem do tempo é colocada em evidência, mas também em xeque. Peças de roupa de cama (fronhas e lençóis) são bordadas com imagens extraídas de publicações antigas e exibidas dobradas e encerradas em caixas de acrílico. Diante desse tempo congelado, guardado com o cuidado com que se guardam os enxovais, o observador desvenda vestígios de uma memória coletiva, que ao mesmo tempo em que lhe pertence também lhe é tão distante. Fragmentos de corpos e de palavras sugerem a liquefação da memória, a impossibilidade de acessá-la, de apreendê-la, compreender que restos de tempo são estes que foram produzidos com o tempo presente e que estão fadados a desaparecer. A memória do presente se desfaz, diante dos olhos de quem mergulha nas entranhas dos bordados mordazes de Sobral."

O conceito é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e foi desenvolvido no livro “Modernidade Líquida” publicado no Brasil em 2001 pela editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro.

Publicado originalmente no catálogo da exposição coletiva Presente Líquido. Casa Andrade Muricy, Curitiba, 2006







Arte: Sistemas e Redes. Texto de Cristina Freire.


“Nesse sistema de comunicação básico que é a linguagem, os artistas também praticam a palavra. Isto é, não simplesmente escrevem, mas procuram dotar a palavra de uma densidade originária perdida. Sua mínima unidade significativa, a letra, torna-se unidade plástica de sentido em vários trabalhos. Ao valer-se das letras livres de qualquer linearidade ou seqüência lógica, operam uma escrita sem sintaxe, superpondo e justapondo palavras, retornando à expressividade plástica das letras e à potencialidade expressiva do acaso, como exploram os poetas concretos.
Divino Sobral desenha histórias e narra palavras. De sua caligrafia surgem desenhos/escrituras que tornam impossível qualquer divórcio entre palavra e forma.”

Publicado originalmente no catálogo da exposição “Arte: Sistemas e Redes”. In: Mapeamento Nacional da Produção Emergente. 2001/03. Rumos Artes Visuais. Itaú Cultural, São Paulo, 2002.







































Os sete desenhos acima são da série "o Poeta e o Profeta". 2001. Aquarela sobre papel. Coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Foto: Rogério Flori.