sexta-feira, 4 de junho de 2010

Entre memória e história, sobre a instalação Onde o tempo se bifurca de Divino Sobral - Texto de Cayo Honorato

Detalhe do manto de Nossa Senhora do Parto, escultura de Veiga Valle fotografada por Paulo Rezende.

Entre memória e história, sobre a instalação Onde o tempo se bifurca de Divino Sobral

Concebida como instalação de grande formato, Onde o tempo se bifurca (2010), do artista (que também atua como crítico e curador) Divino Sobral, compõe-se de duas partes. De um lado, a reprodução em tamanho natural do único exemplar existente na Cidade de Goiás de um muxarabiê (balcão de origem mourisca, da altura de uma porta e coberto de treliça, muito usado pela arquitetura colonial do século XVIII, mas nesse caso, segundo o artista, reconstruído a partir de desenho do início do XIX, feito pelo artista inglês William Burchell [1781-1863], representando a casa onde atualmente está instalado), junto ou através da qual se pode ver, na parede que lhe serve de fundo, a fotografia de um detalhe característico, em tamanho ampliado, do tratamento gráfico e pictórico que Veiga Valle (1806-1874) dava a suas esculturas, sendo ele um dos principais artistas do barroco brasileiro em Goiás. Do outro, uma série de 21 fronhas de algodão, submetidas a um processo de oxidação, nas quais foram bordadas informações sobre a cidade, tais como: datas, nomes de personalidades políticas e culturais, de edificações públicas e particulares, inscrições recolhidas da paisagem local, depoimentos obtidos em entrevistas com “quaisquer” moradores antigos da cidade, além de elementos arquitetônicos diversos (janelas, colunas, balaústres, ornamentos, etc.), geralmente pouco notados. Uma das fronhas se destaca das demais, figurando entre outras a casa onde teria morado Bartolomeu Bueno da Silva, fundador em 1727 do então Arraial de Sant’Anna.

Extraída de um conhecido conto de Jorge Luis Borges (O jardim de veredas que se bifurcam), a “bifurcação temporal” alude a uma “rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos”, como procedimento construtivo de um livro-labirinto infinito, capaz de abranger simultaneamente todos os desenlaces – o que traduz, na instalação, uma sobreposição específica de linguagens, suportes, evidências, narrativas e durações. Dessa forma Sobral desdobra seu interesse, manifesto desde o início de sua trajetória nos anos 1990, pelos caminhos da formação da memória, da recordação, da reminiscência, do esquecimento, enquanto modos de percepção da atualidade do passado, entendido como tempo da existência tanto individual, quanto coletiva ou mesmo imemorial. Mas enquanto os primeiros trabalhos buscavam materializar esses processos no âmbito de uma arqueologia pessoal (por exemplo, em esculturas feitas com pêlo humano, como aquilo que no corpo tensiona seus limites orgânicos; em pedaços de sabão artesanal, empilhados de modo semelhante a pequenas ruínas; ou mais recentemente na organização de uma antologia da pedra na poesia, na qual a vida geológica é eventualmente testemunhada), Onde o tempo se bifurca intercepta os modos de explicação da realidade histórica de um lugar, todavia, na qualidade de enunciado poético, de um determinado arranjo de signos, que redistribuísse talvez as interpretações do que é ou não verdadeiro nessa realidade, abrindo as possibilidades de se pensar a história. (Cf. Jacques Rancière. A partilha do sensível. [capítulo IV]).

É certo que essa “despersonalização” (no sentido da história, mas também da tradição artística) não tem exatamente uma pretensão teórica. Como uma espécie de maquina da visão, o muxarabiê faculta múltiplas linhas de fuga por diferentes visibilidades, a serem experimentadas pelo corpo na temporalidade que ele adensa. Também os registros nas fronhas oxidadas, como se em “páginas avulsas de um livro desencadernado”, mais do que uma explicação, lembram a consistência do que é pelo sono decantado ou não cessa de se dissipar. Há porém um “distanciamento”: a libido impregnada aos primeiros trabalhos por uma artesania compulsiva, em Onde o tempo se bifurca, migrou para um processo de pesquisa, que precede e ao mesmo tempo ultrapassa a execução da instalação, suscitando um regime conceitual particularmente afetivo. Em termos cognitivos, é a personagem do mesmo conto de Borges quem “melhor” nos situa em tais deslocamentos: “todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente agora (...) e tudo o que realmente acontece, acontece a mim...” Uma ressalva: engana-se quem pensa que o artista goiano, no que seria seu trabalho mais “regional”, assume uma vontade por identidade ou qualquer sentimento nostálgico. Mais propriamente, estaria em jogo aqui o que fosse “contemporâneo”.

Cayo Honorato, São Paulo, abril de 2010

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