sábado, 28 de fevereiro de 2009

Presente Líquido. Texto de Juliana Monachesi




Vista da exposição Presente Líquido na Casa Andrade Muricy, Curitiba, 2006.


"No horizonte de uma sociedade líquida tudo é mutável. A Manhattan de cartão postal da modernidade sólida pretenderia ostentar perenemente as duas torres mais altas do mundo. A Corrida pela engenhosidade e excelência arquitetônicas de arranha-céus já havia desbancado o World Trade Center do topo da lista com edifícios ensandecidamente mais altos em Taiwan e na Malásia. Mas a Modernidade líquida das redes econômicas e políticas de poder, operando em permanente fluxo, sem fronteiras e sem identidades definidas, apagou do horizonte de Nova York o maior ícone da solidez de uma sociedade e de um tempo, depois da queda das torres, definitivamente encerrados no passado.

O território é substituído pela mobilidade, o espaço dos fluxos sobrepõe-se ao “espaço dos lugares”, ao lugar fixo da memória geográfica e cultural, a ausência de fronteiras tira o sentido da crítica moderna aos não-lugares; em um mundo de informações fluídas e permeabilidade desenfreada, tudo e todos se contaminam do espírito do tempo, mesmo que à própria revelia. Nada nem ninguém estão imunes. A identidade fixa dá lugar a infindável mutabilidade dos quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções. O desmonte dos grandes meta-relatos da modernidade (o Iluminismo, o Marxismo e as utopias do século 20) resultou em uma sociedade que não aspira à permanência e em indivíduos cujas relações e ambições são temporárias.

Dado este pano de fundo de uma condição humana fluida e volátil, de um contexto cultural pautado na leveza e de um presente líquido, como é que os artistas contemporâneos têm se posicionado na construção de suas poéticas? Tomemos os bordados de Divino Sobral, engendrados pela reflexão sobre “a passagem do tempo que gera o desgaste das coisas e afetos, a formação da memória e os processos de lembrança e de esquecimento”, nas palavras do artista. Estas obras são feitas por meio da imersão de tecidos em água acrescida de materiais oxidantes. O material de trabalho de Sobral é artificialmente “envelhecido” para disparar no observador o sentido fraturado da memória.

A partir do conceito poético que o artista denomina “O tempo é água”, a passagem do tempo é colocada em evidência, mas também em xeque. Peças de roupa de cama (fronhas e lençóis) são bordadas com imagens extraídas de publicações antigas e exibidas dobradas e encerradas em caixas de acrílico. Diante desse tempo congelado, guardado com o cuidado com que se guardam os enxovais, o observador desvenda vestígios de uma memória coletiva, que ao mesmo tempo em que lhe pertence também lhe é tão distante. Fragmentos de corpos e de palavras sugerem a liquefação da memória, a impossibilidade de acessá-la, de apreendê-la, compreender que restos de tempo são estes que foram produzidos com o tempo presente e que estão fadados a desaparecer. A memória do presente se desfaz, diante dos olhos de quem mergulha nas entranhas dos bordados mordazes de Sobral."

O conceito é do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e foi desenvolvido no livro “Modernidade Líquida” publicado no Brasil em 2001 pela editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro.

Publicado originalmente no catálogo da exposição coletiva Presente Líquido. Casa Andrade Muricy, Curitiba, 2006







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